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Clementina de Jesus

Clementina de Jesus – Cantora e compositora.

Sambista fluminense, dona de uma voz inconfundível, potente e ancestral, Clementina de Jesus foi a síntese do Brasil, expressão de um país de forte herança africana e de singular formação religiosa. Conhecida como Rainha Quelé, carregava consigo os banzos de seus ancestrais, transformados em cantos, encantos e segredos nos jongos, no partido-alto e nas curimbas que cantava. Diferentemente das conhecidas e famosas “divas do rádio” que brilharam na primeira metade do século XX, a cantora negra tinha um timbre de voz grave, mas com grande extensão e um repertório de músicas afro-brasileiras tradicionais.(Museu Afro Brasil)

Nascida na cidade de Valença (RJ) em 1901,  na região do Vale do Paraíba, tradicional reduto de jongueiros, Clementina era filha da parteira Amélia de Jesus dos Santos e de Paulo Batista dos Santos, capoeira e violeiro da região. Uma de suas avós chamava-se Teresa Mina. A pequena Clementina viveu a infância na cidade natal, ouvindo sua mãe cantar enquanto lavava as roupas a beira do rio. Assim foi guardando na memória tesouros que mais tarde gravaria em discos. Aos sete anos veio com a família para a cidade do Rio de Janeiro, bairro de Oswaldo Cruz, onde mais tarde surgiria a tradicional Escola de Samba Portela. Lá frequentou em regime semi-interno o Orfanato Santo Antonio e “Cresceu assim num misticismo estranho: vendo a mãe rezar em jejê nagô e cantar num dialeto provavelmente iorubano, e ao mesmo tempo apegada a crença católica.” (Hermínio Bello de Carvalho). 

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Até os quinze anos, Clementina participou do grupo de Folia de Reis de seu João Cartolinha, renomado mestre da região. Foi João quem levou a moça para o Bloco As Moreninhas das Campinas, embrião da Escola de Samba Portela, onde ocorriam de rodas de samba e onde Clementina conheceu grandes bambas como Paulo da Portela, Claudionor e Ismael Silva. Nesse tempo, a voz de Clementina já chamava a atenção e ela foi convidada por Heitor dos Prazeres para ensaiar suas pastoras, o que fez durante muitos anos. Casou-se com Albino Pé Grande e foi morar no Morro da Mangueira, de onde não saiu mais. Ao longo destes anos Clementina trabalhou como lavadeira e empregada doméstica. Sua atividade de cantora ela exercia sem intenção de fazer-se profissional, cantava porque preciso era cantar, por prazer, por alegria.

A carreira profissional de Clementina de Jesus como cantora começou aos 63 anos, depois que o produtor e compositor Herminio Bello de Carvalho a encontrou na festa da Penha em 1963, quando ela cantava na Taberna da Glória. Hermínio ficou fascinado pela sambista e quando a reencontrou, na inauguração do restaurante Zicartola, passou a ensaia-la em sua casa, preparando-a para o espetáculo Rosa de Ouro, show que a consagraria. Participavam do show, além de Clementina de Jesus e da cantora Aracy Côrtes, diversos sambistas das Escolas de Samba cariocas, entre os quais os ainda desconhecidos Paulinho da Viola e Elton Medeiros. A crítica foi unânime em exaltar Clementina e seu desempenho, tanto no show quanto nos dois LPs gravados ao vivo, as primeiras gravações da cantora. Nos anos seguintes Clementina participou dos discos Mudando de conversa, Fala Mangueira! e Gente da antiga, este último um disco antológico da música brasileira, ao lado de João da Baiana e Pixinguinha. No continente africano, participou do encontro das artes negras de Dakar em 1966, ao lado de outros bambas como Martinho da Vila e artistas como Rubem Valentin. Clementina foi o maior sucesso do festival e grande destaque. Ao final do show da cantora as pessoas invadiam o palco para abraçá-la, contou Sérgio Cabral. Também no mesmo ano ela representou a música brasileira no festival de cinema de Cannes, na França.

Naquele mesmo ano de 1966, Clementina gravou seu primeiro disco solo, intitulado Clementina de Jesus, com repertório de jongo, curima, sambas e partido-alto. A capacidade de Clementina de transmitir poderosa emoção através do canto chamou a atenção dos críticos, que, de novo, renderam-se aos encantos de sua voz. Também Milton Nascimento, fascinado pelo banzo de Clementina, convidou a cantora para participar de seu disco chamado Milagre dos Peixes gravando a excepcional faixa Escravos de Jó.

Ao todo a cantora gravou 13 LPs entre álbuns solos e participações em álbuns coletivos, com destaque para o disco O Canto dos Escravos, composto de vissungos de escravos da região de Diamantina, recolhidos por Aires da Mata Machado. Unanimidade entre a crítica, Clementina foi louvada como elo entre África e Brasil, tendo sido reverenciada por grandes nomes da música brasileira, como Elis Regina, João Nogueira, Clara Nunes, Caetano Veloso, Maria Bethânia e João Bosco. Todos a tratavam com muito carinho, inclusive alguns a chamavam carinhosamente de mãe Clementina. O sambista Candeia compôs um samba em homenagem à Rainha Quelé chamado “Partido Clementina de Jesus”, que a cantora gravou ao lado de Clara Nunes em 1977 no LP “As Forças da Natureza”.

Durante sua vida, recebeu várias homenagens, entre elas a do então Secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro, no Teatro Municipal, do Rio de Janeiro, em agosto de 1983. O evento contou com a presença de várias personalidades e artistas, como João Nogueira, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Elizete Cardoso, Orquestra Sinfônica Brasileira, Ala das Baianas de várias escolas de samba, Gilberto Gil, Dona Zica, Dona Neuma, mestres-salas e portas-bandeiras, acompanhados pela bateria da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. E abriu, pela primeira vez, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro para o samba.

Em 1985, recebeu do governo francês, através do Ministro da Cultura Jack Lang, a “Comenda da Ordem das Artes e Letras”, com a presença de Jorge Amado, Caetano Veloso e Milton Nascimento. Ficou conhecida como a “Rainha Ginga” ou “Quelé”. A primeira homenagem foi dada devido a sua importância e grandeza na música popular, e a segunda devido à corruptela carinhosa de seu nome. 

Clementina faleceu vítima de derrame em Inhaúma, Rio de Janeiro, no ano de 1987, aos oitenta e seis anos.

“Vai dar galho”
São várias histórias, como a de como Clementina conheceu Albino Corrêa Bastos da Silva, o Albino Pé Grande, que seria o seu grande amor. Integrante da Unidos da Riachuelo (bairro da zona norte carioca) e depois portelense declarada, ela estava no Morro da Mangueira quando viu Albino, 10 anos mais novo, e pensou: “Que mulato bonito!”. Era 1938, e Clementina tinha uma filha, Laís, de um namorado que não assumiu o relacionamento. Ao jornalista Millôr Fernandes, d’O Pasquim, ela contou sobre o início do namoro, bem ao seu estilo direto.

“É, vai dar galho esse negócio”, eu disse. Chamei ele e falei: “Olha, meu amigo, meu caso é esse: se gostar de mim, gosta, se não gostar, não gosta. Vou ser sincera com você. Você trabalha?” Ele disse que trabalhava, sim. Na Estrada de Ferro Central de brasil. Boas falas! E eu: “Porque eu trabalho, meu filho. Eu não quero ninguém pra ficar nas minhas costas não. Você é bonito e eu sou uma crioula e coisa e tal, morou? Resultado, estamos juntos há 37 anos. Casadinhos, civil e religioso.

Clementina, que acabou se aproximando da verde-e-rosa, e Albino – que de ferroviário passaria a estivador – ficaram juntos até a morte dele, em junho de 1977. Os seis últimos anos foram particularmente difíceis, depois que Albino sofreu um infarto e passou a precisar de cuidados constantes. Tiveram uma filha, Olga, nascida em 1943 (em 1940, o recém-nascido Euclides morreria em pouco tempo, em consequência de uma pneumonia; Laís, a primogênita, morreu em 1974, depois de sofrer um acidente vascular cerebral). (Brasil de fato)

Canto dos escravos, canto final.
E assim foi Clementina, já com a saúde abalada após sofrer um derrame, em 1973, e tendo de cuidar do seu querido Pé. A sua última aparição em estúdio foi em 1985, na gravação da trilha sonora do filme Chico Rei, de Walter Lima Jr. Ela interpretou Quilombo de Dumbá e Chico Reina, cantos de origem religiosa, como lembram os autores do livro.

Naquele 1985, Quelé tinha uma filha, sete netos, seis bisnetos e dois tataranetos. Um show no Circo Voador, no Rio, foi feito para ajudá-la, como se lia em um folheto: “Ela gostaria de ganhar como presente a linha de seu telefone, cortada por falta de pagamento”. E também reclamava de calotes de empresários.

Bem antes disso, em 1979, com constantes problemas financeiros, Clementina escreve uma carta (reproduzida no livro) ao ministro da Previdência, Jair Soares, pedindo aposentadoria como cantora. O texto é ilustrativo das relações entre o povo e o poder público no Brasil.

“A nêga Clementina de Jesus já passou por muita coisa na vida.
E hoje, para viver, beirando os 80 anos, necessita ainda se locomover por esse Brasil inteiro fazendo a única coisa que ainda pode: cantar.
Mas a nêga véia está cansando, seu Ministro. O que me dá forças prá prosseguir é essa juventude maravilhosa, que me recebe de braços abertos prá todo lugar onde vou.
Depois de trabalhar muitos anos como doméstica, com marido dando duro na estiva, me sobra bem pouco para viver, prá dar sustento aos meus netos.”

No final, conta que tem outros na mesma situação difícil:

“Pois é, doutor Ministro: a nêga véia e muitas outras pessoas do nosso meio estão no mesmo pagode.”

A resposta, dois dias depois, foi protocolar. (Brasil de Fato)

Em 2012 foi lançado o documentário  “Clementina de Jesus – Rainha Quelé” com direção de Werinton Kermes.  Usando depoimentos e material de arquivo coletados ao longo de mais de dez anos, o filme acredita que é um direito do cidadão brasileiro de conhecer a figura e a voz única de Clementina de Jesus.

Você pode conferir o documentário aqui no Black Blog.

(*Embora o nosso texto seja elaborado a partir de referências e fontes explicitadas abaixo, alertamos que poderá conter simplificações a fim de resumir narrativas e adequar ao espaço proposto pelo blog. Att.: Black Blog/Estrela Preta)

Fontes

Museu Afro Brasil. Disponível em < http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/hist%C3%B3ria-e-mem%C3%B3ria/historia-e-memoria/2014/07/17/clementina-de-jesus >                                                                                                                                      
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em <https://dicionariompb.com.br/clementina-de-jesus/biografia>
Clementina. De uma voz do povo emerge o canto ancestral. (Brasil de Fato 2017) Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2017/02/07/clementina-de-uma-voz-do-povo-emerge-o-canto-ancestral>
Filme:
Clementina de Jesus – Rainha Quelé. Direção: Werinton Kermes. Brasil, 2012, 56’. Documentário.
             
 

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